Ganhos da Lei da Despenalização do Aborto
“Pensei até em suicidar-me, jogar-me de uma ponte, fui irresponsável ao permitir uma relação desprotegida e hoje, meu pai uma vez mais foi o meu herói, ao me nascer de novo”, Catarina Manuel, adolescente de 15 anos, residente em Tete.
O aborto inseguro é uma das principais causas de mortalidade materna em Moçambique e, desde 2015, que o país passou a dispor de uma lei que permite o aborto, aumentando significativamente as condições sob as quais é legal obter um aborto seguro.
Na província de Tete, a Direcção Provincial de Saúde, DPS, registou de Janeiro a Dezembro de 2021, pelo menos 1684 casos de admissões para o aborto seguro, um aumento em mais de 100%, se comparado com o igual período do ano 2020, em que deram entrada nos serviços de ginecologia 784 casos.
Para o Chefe da Repartição Provincial de Prevenção e Controlo de doenças, Filipe Mateus, na DPS-T, estes dados são animadores se tivermos em linha de conta que contribuíram em larga escala para a redução da mortalidade materna, em 15%, olhando para as práticas do passado.
“Com a introdução desta lei, muitas complicações de mulheres após um aborto clandestino reduziram drasticamente, o que nos fazer perceber o impacto desta lei, embora, ainda seja em dose menor, visto que ainda se regista o défice no acesso á informação, mas claramente, que há ganhos e os indicadores de mortes maternas, por causa de aborto seguro, se cruzados com outros, tendem a decrescer. A tendência é de procurar pelos serviços de aborto seguro na unidade sanitária”, disse Filipe Mateus, para mais adiante situar sobre o início deste programa em Tete. “Apesar de a lei existir desde 2015, nós começamos a implementar em Tete, em 2018, ou seja, três anos mais tarde e, começamos com os hospitais de referência, tendo passado depois para todas unidade sanitárias das sedes distritais da província, a oferecer os serviços de aborto seguro. Graças aos parceiros, como ICRH-M, Pathfinder, que trabalham no campo da saúde sexual e reprodutiva, expandimos para mais 6 distritos, nomeadamente, Angónia, Cahora Bassa, Changara, Tete, Moatize, Mutarara, e Doa”.
Aborto é a interrupção da gravidez, e ela pode ser induzida ou espontânea. Entretanto, o induzido é um acto médico, feito numa unidade sanitária, com um profissional altamente qualificado, e com o Termo de Consentimento aprovado pela Direcção do hospital. O aborto seguro tem de ser algo consentido, com menos de 12 semanas, ou até 16 semanas, em caso de estupro ou relação de incesto.

doenças na Direção Provincial de Saúde de Tete
“PENSEI EM ME SUICIDAR”
Catarina Manuel é uma adolescente de 15 anos, faz parte desta estatística. A encontramos a caminhar de mãos dadas com o pai, no pátio do Hospital Provincial de Tete. Ela acabava de ser submetida a um aborto médico, e nos conta na primeira pessoa. “Estava fora das minhas hipóteses, e nunca imaginei, com a minha idade pudesse passar por uma situação desta. Só agradeço ao meu pai pela atenção e cuidado, porque foi ele quem descobriu que eu estava estranha, e era gravidez. Não sou totalmente a favor deste recurso, aborto, porque acho que a prevenção deve ser sempre o melhor remédio, mas ao mesmo tempo sou feliz por existir esta lei, porque já era um sonho hipotecado”, disse Catarina Manuel, de 15 anos de idade, com o sonho de ser jurista. Mais adiante, Catarina conta o pânico vivido, com uma barriga de dois meses e com o suposto namorado em parte incerta.
“Pensei até em suicidar-me, jogar-me de uma ponte, fui irresponsável ao permitir uma relação desprotegida e, hoje, meu pai uma vez mais foi o meu herói, ao me nascer de novo. Foi graças ao conhecimento que ele tem destes serviços, que levou-me até aqui. É bem-vinda esta lei, e que a qualidade dos serviços seja sempre a mesma, mas, que seja este um último recurso, depois de esgotado o da prevenção, vaticinou Catarina Manuel.
O Ministério da Saúde introduziu serviços de aborto seguro dado o elevado índice de gravidez na adolescência e Casamento prematuro, e Tete, é uma destas províncias, portanto, com altos níveis de necessidade de serviços de aborto seguro. A título ilustrativo, dos 1684 casos registados de aborto seguro, metade, ou seja, 50% são em adolescentes e jovens dos 10 aos 19 anos que solicitaram os serviços, e com maior destaque para o Distrito de Tete, com 1773 admissões por qualquer tipo de aborto, e 674 para o aborto médico, ou seja seguro. O Distrito de Moatize contribuiu para a estatística com 857 admissões e 470 e em terceiro, Cahora Bassa, com 400 pedidos de aborto seguro.
Segundo Filipe Mateus, no rol das causas de solicitação destes serviços estão as gravidezes indesejadas, violações sexuais e em alguns casos extremos, relações de incesto, sobretudo, nas zonas rurais. Grande parte destas raparigas interrompem a gravidez para continuar a estudar e outras, por que tem bebé pequeno e não estão preparadas para criar um segundo filho.
“HÁ POUCA DIVULGAÇÃO DA LEI”
João Sérgio Mutacate, médico ginecologista do Hospital Provincial de Tete e membro da Associação Moçambicana de Ginecologistas, AMOG, intervindo recentemente, numa mesa redonda de reflexão em torno da aplicabilidade da lei que despenaliza o aborto, lembrou que todo caso de aborto médico é ou deve ser acompanhado por algum método contraceptivo, aliás, “ se de facto os serviços de planeamento familiar funcionarem em pleno, claramente que casos de aborto, quer clandestinos ou médicos poderão reduzir. Há que reforçar o uso de métodos contraceptivos no pós-aborto e se possível de longa duração”, disse João Sérgio, que mais adiante elencou como desafios a consolidação dos serviços, incremento de oferta de métodos contraceptivos e, acima de tudo, na aposta na massificação do acesso a informação.
Porque o aborto é um assunto que mexe com diversos segmentos da sociedade, dada a componente sociocultural, religiosa, ainda é feito muito pouco por parte do Governo na divulgação destes serviços e da lei e, a DPS reconhece este facto. “ Este é outro desafio, como sector da saúde, do acesso á informação e divulgação dos serviços de aborto seguro, para a erradicação dos mitos e tabus que imperam na nossa sociedade, por isso, e para isso trabalhamos com os nossos parceiros, que implementam projectos nesta área, na divulgação da lei da existência do serviço e de que é gratuito”, disse o Chefe da Repartição Provincial de Prevenção e Controlo de doenças, Filipe Mateus, na DPS, fazendo alusão ao ICRH-M e Pathfinder.
Com o apoio do Fundo de Ação para o Aborto Seguro (SAAF), o ICRH-M implementa um “projeto de demonstração” de dois anos em três distritos da Província de Tete, envolvendo intervenções complementares para reduzir as barreiras institucionais e sociais ao aborto seguro, e usar essa experiência para contribuir com o aprendizado de como melhorar a implementação efetiva do aborto seguro de maneiras que sejam aceitas pelos profissionais de saúde e pelas comunidades. As principais estratégias do projeto são: orientar os profissionais de saúde para fornecer serviços de qualidade; trabalhar com mulheres, meninas e comunidades para aumentar o acesso à informação e reduzir o estigma; e documentar e compartilhar experiências de projetos.
É neste intuito, com a introdução da lei da despenalização do aborto em Moçambique, em 2015, que pelo menos 50 profissionais de saúde foram capacitados em matéria de aborto seguro na província de Tete, para garantir a oferta com qualidade e dentro dos parâmetros permitidos pela lei, as Unidades Sanitárias foram apetrechadas, com equipamento médico-cirúrgico e, a divulgação dos serviços na comunidade, para criação de demanda com a formação de activistas, comités de cogestão das US, e lideres comunitárias.
“O aborto só vai continuar a ser um mito se, de facto, não falarmos dele. Não se trata de incentivar, mas é preciso ampliar o acesso à informação, e dar uma solução a um problema que afecta a muitas mulheres e raparigas, que por desconhecimento da existência da lei ou da oferta dos serviços de qualidade nas unidades sanitárias e de forma gratuita, recorrem a métodos tradicionais não seguros, que em muito terminam em mortes”, disse Vitoria Mubai, gestora do Projecto no ICRH-M, a margem de uma formação de líderes comunitários de três localidades no distrito de Changara.

LIDERES COMUNITÁRIOS CAPACITADOS EM MATÉRIA DE ABORTO SEGURO
Nas áreas rurais, os líderes locais têm grande influência sobre a comunidade em geral, como líderes tradicionais, líderes religiosos, anciãos e líderes de ritos de iniciação. Os grupos comunitários mencionados acima incluem esses líderes, bem como outros indivíduos influentes, como agentes comunitários de saúde e professores; esses grupos geralmente também têm o papel de compartilhar informações com a comunidade em geral, e seu envolvimento pode ajudar a quebrar o silêncio sobre o aborto, mas de uma forma que reconheça as sensibilidades socioculturais em torno do assunto.
“Estamos muito felizes por esta capacitação, e por saber que há este serviço de aborto seguro, aqui no nosso distrito. Vamos trabalhar para reduzir o índice de abortos inseguros e clandestinos, o que é uma realidade no nosso distrito”, dava voz Sandreque Guidione líder do terceiro escalão, à margem da capacitação.

Estes lideres partilham algumas experiências vividas nas suas comunidades e afirmaram que a situação de aborto inseguro ao nível do distrito ainda prevalece e chega a ser complicado, quando vê valores culturais e de boa convivência a serem subvertidos, como por exemplo, situações de relações de incesto, de pai que olha para sua filha como esposa e deste casamento incomun, nascer filhos.
“Por isso, apoiamos bastante esta iniciativa do projecto, de capacitar ou formar a este grupo social nesta matéria pois, é de grande valia no seio das nossas comunidades para reverter este quadro. Queremos ajudar a população, queremos contribuir com as nossas acções, a reduzir casos de abortos clandestinos e inseguros, que em muitas das vezes, terminam em morte. Com esta lei, temos um instrumento importante para desvendar mitos e tabus, e por via disso, acabar com as cobranças ilicitas, e práticas constumeiras”, disse Afonso Macanga, Presidente do Conselho de Co-gestão.
O projecto é implementado em tres distritos da provincia de Tete, nomeadamente Angónia, Changara, e Cahora Bassa. até Março de 2022. Em Cahora Bassa já se fala em ganhos:
“O projecto veio mudar o comportamento das nossas comunidades e dar vida, mais vida às nossas adolescentes. Antes as nossas meninas faziam o aborto clandestino, inseguro e com todos os riscos associados, algumas perdendo a vida por não ter informação. Hoje o cenário é diferente. Com mais informação, há mais demanda, e dificilmente temos casos complicados e raramente há registo de mortes”, disse, visivelmente satisfeita, Sara Tomo, Supervisora Distrital de SMI do Centro de Saúde de Chitima.